Normalmente, quando há um lugar abandonado pela cidade o pensamento comum é apenas desviar dali, como se houvesse um apagamento da área. Até o dia em que o lugar é comprado, e o que ainda resta ali é derrubado e, em algum tempo, algo totalmente novo surge no lugar.
Até aí, nenhum problema. Mas, às vezes, perde-se uma rica oportunidade de resignificar o lugar e criar um espaço mais humano, que inspire o convívio social e dê espaço para iniciativas que tornem as cidades mais humanas.
No início deste século, um novo parque inaugurado em Nova York surpreendeu não só os especialistas em arquitetura e paisagismo no mundo todo, mas também todas as pessoas que para lá viajam e vivenciam a cidade.
Construída em 1930, a ferrovia, que antes era o destino das mercadorias trazidas ao distrito industrial de Manhattan, entrou em declínio. Com o encerramento das atividades na linha, após a década de 1980, cogitou-se a sua destruição, mas os moradores da região decidiram se unir para recuperá-la e transformá-la em algo muito mais valioso.
O High Line é peculiar: um parque linear de 2,4 km em Nova York inaugurado em 2009 sobre esta antiga estrutura ferroviária elevada, e que muito tem a nos ensinar em abordagem de projeto de arquitetura paisagística.
Cortando três bairros da cidade, toda a área ao seu redor passa por um intensivo desenvolvimento imobiliário. Durante o percurso a pé, que pode durar até duas horas, passamos por edifícios novos e antigos, alguns até mesmo com as janelas abertas para o parque.
Neste artigo, vou compartilhar com vocês as minhas percepções sobre esse projeto que trouxe tantas mudanças para a cidade.
A mobilização da sociedade civil faz a diferença na criação de espaços urbanos de qualidade
Em 1989 uma estrutura similar ao High Line, localizado a leste, junto ao rio East, havia sido demolida e havia toda uma pressão do mercado imobiliário para que o High Line fosse o próximo, já que era entendido que sua permanência desvalorizava os terrenos.
Foram nessas discussões públicas sobre a intervenção urbana no bairro de Chelsea que dois moradores, Joshua David e Robert Hammond, se encontraram e decidiram formar a associação Amigos do High Line, inicialmente com a proposta de preservação da estrutura, como preservação da história do bairro.
Contudo, o argumento da preservação por ele mesmo era muito fraco para sustentar a ideia, eles então encomendaram um estudo de viabilidade financeira junto a uma consultoria de desenvolvimento econômico e urbano para provar que o retorno com impostos gerados pela preservação poderia ser muito maior do que com a demolição.
A grande sacada para convencer a opinião pública, no entanto, foi uma campanha promovida pela associação com grandes outdoors mostrando fotos do High Line, tiradas pelo fotógrafo Joel Sternfeld e posicionados estrategicamente sobre as ruas do bairro.
Todas essas ações e a constante pressão nos órgãos públicos resultaram em investimento para, em primeiro lugar, elaborar um concurso público de ideias para a contratação do futuro projeto.
A arquitetura paisagística é uma ferramenta poderosa para a requalificação de espaços públicos
Mundo afora é nítido o entendimento que as ferramentas oferecidas pela Arquitetura Paisagística são a chave para a criação e renovação de espaços livres de qualidade, pois são objetos da profissão, o estudo e o estabelecimento de relações adequadas e pertinentes entre as pessoas e seu entorno imediato.
O projeto ganhador do concurso, de autoria do consórcio formado pelos escritórios James Corner Fields Operation e Diller Scofidio + Renfro, com suas elaboradas pranchas cheias de inspiração, despertou grande interesse no público e potencializou a arrecadação de fundos para a elaboração da obra.
Segundo James Corner, um dos autores do projeto, “com o High Line, procuramos retratar situações do cotidiano, chamando a atenção para os prédios abandonados, velhas escadas de incêndio, táxis nas ruas, grama e flores nascendo no piso – coisas do cotidiano que são facilmente esquecidas.”
Na arquitetura paisagística esse direcionamento do olhar das pessoas é algo estudado e possui metodologia para ser estabelecido, seja pela direção proposta dos caminhos, pela disposição dos arbustos, posicionamento da iluminação, etc.
O High Line proporcionou lançar luzes para todos esses elementos urbanos de uma forma única, despertando interesses e fomentando novas mobilizações da sociedade em prol da melhoria do espaço da cidade.
A renovação do uso do espaço pode tranquilamente conviver com a preservação da história
Muitos foram os desafios técnicos e de regulamentação a serem superados para a implementação do parque. Um dos exemplos citados pelos autores foi que, por estar situada a 9 m do chão e passar por cima das ruas, a estrutura era classificada pelas autoridades como ponte, e que precisaria, pela lei local, possuir guarda-corpos de 2,4 m, o que criaria um volume desproporcional e que competiria com a estrutura histórica.
Foi então proposta uma complementação do antigo gradil existente, na forma de uma barra paralela ao chão, na altura de 1m, que já garante uma proteção adequada, um singelo guarda-corpo, como se tem nas varandas dos prédios.
Hoje, observando a estrutura, a história está preservada no desenho clássico do antigo gradil e a barra superior, também pintada de preto, abriga ainda luminárias embutidas para a iluminação e segurança do espaço para uso noturno.
O lazer esportivo não é uma atividade obrigatória nos espaços de lazer bem sucedidos
Um dos argumentos contra a construção do High Line foi a duplicidade de usos que poderia ocorrer com o Parque Linear ao longo do Rio Hudson.
Seja pela largura incompatível da estrutura histórica, seja pela diferente sensação de estar a 9 m de altura do chão, o time de arquitetos desde o início chamou a atenção pelo silêncio que lá se vivencia, isso logo nas primeiras visitas ao local.
E junto a ele, uma sensação de hiper-realidade, onde os mínimos detalhes são percebidos, seja uma rachadura no chão, uma flor desabrochada, um ninho de passarinho sob um trilho solto. Assim, um dos primeiros (e mais polêmicos) conceitos que propuseram foi de preservar essas características, evitando pista de cooper, ciclovia e quaisquer usos esportivos, “keep it slow”, como diziam os autores.
Ao contrário, foram propostas espreguiçadeiras, bancos, lugares seguros para estar com crianças e inúmeros espaços para convivência relaxada e encontros, espaços hoje tidos como indispensáveis e qu são as grandes vedetes do parque.
O imprescindível papel de coordenação do arquiteto paisagista junto ao time de especialistas de projeto e construção do espaço verde
A arquiteta Elisabeth Diller conta que quando foi convidada por James Corner para trabalharem juntos no High Line, ela considerou que somente o conhecimento de arquitetura não era suficiente para abordar suficientemente bem o problema de intervenção em uma relíquia histórica para a implantação de um parque suspenso.
Foi um trabalho concebido e coordenado a várias mãos pelas duas empresas, onde o conhecimento específico de cada uma em sua área contribuía para soluções engenhosas dos problemas que surgiam. Não raro em trabalhos de mesmo porte no Brasil, o arquiteto paisagista acaba tendo uma atuação muito discreta e complementar, originando lapsos de conhecimento que resultam em desenhos aquém do potencial.
Quando há uma predominância de espaço livre em detrimento a edifícios, é imprescindível o papel coordenador do paisagismo, guiando desde soluções conceituais de layout junto aos clientes, com também em questões técnicas de terraplanagem, drenagem e demais infraestruturas que devem atender às necessidades dos espaços livres.
A forma segue a sensação (não a função)
A célebre frase proferida pelo arquiteto proto-moderno Louis Sullivan, cuja influência na arquitetura moderna foi considerável, precisa ser repensada quando falamos de espaços livres. O grande sucesso do High Line se deu, em grande parte, devido à deliberada estratégia de preservação das sensações que o espaço já oferecia.
Oferecer espaços de descanso, de contemplação do entorno e colocá-los em evidência através de um elaborado desenho, foi uma estratégia muito acertada e reforçou o “genius loci”, ou seja, o espírito do lugar, conceito central na arquitetura paisagística. Porque, então, não fazer uso mais frequente do estudo desse conceito para a criação de novos espaços urbanos?
Um parque urbano pode ver a peça central para uma política de desenvolvimento local
O High Line foi uma peça fundamental na infraestrutura urbana de Nova York no passado. A estrutura cruzava Manhattan verticalmente com transporte ferroviário, como um símbolo da industrialização. Com a desativação e abandono, seus arredores sofreram com a decadência urbana e desvalorização imobiliária.
O projeto de paisagismo utilizou a própria natureza, que involuntariamente tomou a estrutura abandonada, como inspiração, e a transformou em um instrumento de lazer pós-industrial, sem destruí-lo.
Com a conclusão do projeto urbanístico e de paisagismo da área, muitos projetos de arquitetura começaram a aparecer principalmente nos últimos cinco anos. Projetos arquitetônicos admiráveis, com altos investimentos, foram erguidos às margens do High Line.
O parque suspenso é frequentado tanto por locais quanto por turistas e seu sucesso resultou no desenvolvimento econômico desta parte de Manhattan, além de um boom imobiliário do entorno. Contradizendo o receio inicial dos moradores que não eram a favor da implantação do parque.
E você, já conhecia a história por trás do High Line? Conta pra mim o que achou disso tudo!